Entenda por que o teste da linguinha é criticado pelos pediatras
“Enquanto legislação exige o exame para detectar a língua presa após o parto, especialistas questionam método e alegam indicações desnecessárias de intervenção cirúrgica, com riscos ao bebê”
A polêmica silenciosa circula pelas maternidades públicas e privadas do país: a obrigatoriedade do teste da linguinha nos recém-nascidos. Trata-se de um exame feito nos primeiros dias de vida do bebê que tem o objetivo de avaliar de forma precoce o diagnóstico da língua presa. Mas o procedimento, validado pelo Ministério da Saúde desde 2014, tem ganhado uma rejeição cada vez maior dos pediatras. A Sociedade Brasileira de Pediatria, oficialmente contra a obrigatoriedade do exame, alega que ele leva a muitas cirurgias desnecessárias. Além disso, em diversas vezes o defeito detectado poderia ser corrigido com um ajuste na amamentação.
O método consiste no corte da membrana embaixo da língua, estrutura também chamada de freio. O bebê que sofre do problema tem o freio mais curto que o normal, o que restringe o movimento da língua e atrapalha a amamentação do recém-nascido. No entanto, os médicos apontam um aumento no número de indicações para o corte sem necessidade, expondo o bebê aos riscos de um procedimento cirúrgico.
O pediatra Daniel Becker, sanitarista do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é um dos que apontam uma recomendação além do normal para a intervenção. Ele ressalta que a análise do caso normalmente precisa envolver outros fatores, como a saúde da própria mãe, para identificar se de fato a causa de problemas com a amamentação é um diagnóstico de língua presa ou não.
— Não há dúvida que o exame virou diagnóstico completamente excessivo e descontrolado. A obrigação do teste está gerando inúmeras propostas de cirurgia desnecessárias. Tem que haver uma melhora dos critérios de direcionamento para uma cirurgia. Ela só é válida quando os sintomas são muito evidentes— afirma Becker.
Becker defende ainda que o Teste da Linguinha pode funcionar como um alerta para um posterior diagnóstico mais bem fundamentado, mas não como uma direta indicação cirúrgica.
Os defensores da regra, no entanto, afirmam não haver uma quantidade exacerbada dos diagnósticos, mas sim um reflexo da subnotificação ao longo dos últimos anos.
— O problema foi subdiagnosticado durante muito tempo e agora as pessoas passaram a se atentar mais para essas alterações. Não estou dizendo que não pode ter o caso de profissionais que não sabem avaliar e fazem um diagnóstico errado, mas o mais importante na minha experiência é que antes os profissionais mal falavam sobre, e hoje ao menos se levanta a hipótese — afirma a fonoaudióloga Roberta Martinelli, criadora do protocolo, e coordenadora do departamento de Motricidade Orofacial da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia.
Ela explica ainda que o protocolo envolve a observação de uma série de fatores, como o movimento da língua durante o choro, posição dos lábios no repouso e o formato da ponta da língua, e reforça que a intervenção é para facilitar a amamentação, recomendada de forma exclusiva durante os seis primeiros meses de vida do bebê pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
— Hoje se sabe que os movimentos de língua durante a amamentação são diferentes de um bebê com língua presa, o que pode levar à dor, à retirada insuficiente do leite da mama, a casos de engasgo, a um gasto maior de energia pelo bebê, que se cansam mais facilmente — explica a fonoaudióloga.
Um alerta internacional e revogação da lei
Os pediatras concordam que nos casos confirmados da língua presa o corte no freio é indicado. No entanto, a Sociedade Brasileira de Pediatria chegou a pedir a revogação da lei que obriga o teste, em 2019, alegando uma baixa incidência da língua presa e que o diagnóstico aprofundado já faz parte do acompanhamento do neonatologista. O ação não foi acatada.
Como os protocolos para definir o problema no recém-nascido não são uniformes, a proporção real no número de casos é difusa. Em um estudo da Universidade de Pernambuco, por exemplo, a língua presa foi detectada em 4,8% dos recém-nascidos utilizando um protocolo britânico chamado BTAT, mas o índice subiu para 17% quando analisado por meio das diretrizes do Teste da Linguinha.
— O que esperamos é que não tenha um número exacerbado de intervenções. Precisamos ter em mente que às vezes se dá atenção demais ao freio lingual daquele bebê que não está mamando, mas não estão sendo analisados outros fatores que podem atrapalhar o aleitamento — afirma a presidente do Departamento Científico de Otorrinolaringologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Renata Di Francesco.
O maior receio com esse tipo de cirurgia desnecessária também fez parte de um alerta emitido pela Academia de Medicina da França no último mês. No comunicado, a instituição repreende um aumento nos casos da intervenção no país e chama atenção para os riscos ao recém-nascido. Ela menciona ainda um aumento em outros países, como na Austrália de mais de 420% nos últimos dez anos.
Os sinais do problema:
- solta o mamilo diversas vezes durante a mamada
- engasga com facilidade na hora da amamentação
- morde o bico do peito com frequência em vez de sugá-lo (isso atrapalha que se alimente de forma adequada)
- sente fome de forma recorrente, logo após mamar
Caso seu bebê apresente alguns os sinais acima, consulte o pediatra ou fonoaudiólogo para analisar o quadro.
De acordo com a instituição francesa, o corte pode ser “um procedimento agressivo e potencialmente perigoso para recém-nascidos ou bebês” nos casos em que não há indicação médica adequada. Ela ressalta que, embora raros, a prática envolve riscos, como hemorragias, infecções e edemas na região.
— Complicações são raras, mas existem. Você pode ter um crescimento exagerado da cicatriz também dependendo do freio, e fazer com que o problema retorne. Então é muito precipitado fazer a cirurgia sem ter uma reflexão maior. Já vi inúmeras crianças com indicação, que não fizeram, e estão ótimas — afirma Becker.
Apesar de ser a favor do protocolo, a criadora do teste concorda que são necessárias medidas para evitar as indicações cirúrgicas desnecessárias, como o estabelecimento de critérios mais rigorosos envolvendo o processo. Um deles é que a análise só possa ser feita por profissionais da saúde especializados em cavidade bucal – hoje a legislação diz apenas que o teste tem que ser feito nas maternidades e hospitais, mas não especifica por quem.
— A pessoa tem que ser treinada, e nem sempre a gente tem isso em todos os serviços. Entre a distribuição de uma cartilha, e os profissionais as lerem e se capacitarem para isso, há uma grande diferença. Hoje, nós temos muitos profissionais que não são da saúde fazendo o diagnóstico — diz Roberta Martinelli.
O que é a língua presa?
Os casos de língua presa, quando o freio debaixo da língua é encurtado e restringe os movimentos, levam a problemas de amamentação para o recém-nascido, mas durante a vida podem provocar dificuldades na pronúncia de alguns fonemas e problemas durante a alimentação em casos mais graves. Essas situações ainda não conseguem ser bem avaliadas no período pós-parto.
De acordo com a instituição francesa, o corte pode ser “um procedimento agressivo e potencialmente perigoso para recém-nascidos ou bebês” nos casos em que não há indicação médica adequada. Ela ressalta que, embora raros, a prática envolve riscos, como hemorragias, infecções e edemas na região.
— Devemos ressaltar que é um procedimento cirúrgico, as complicações são raras, mas existem. Muitos médicos afirmam ser muito precipitado fazer a cirurgia sem ter uma reflexão maior. Afinal, inúmeras crianças com indicação, e não fizeram, estão ótimas.
A criadora do teste, mesmo sendo a favor do protocolo, concorda que são necessárias medidas para evitar as indicações cirúrgicas desnecessárias, como o estabelecimento de critérios mais rigorosos envolvendo o processo. Um deles é que a análise só possa ser feita por profissionais da saúde especializados em cavidade bucal – hoje a legislação diz apenas que o teste tem que ser feito nas maternidades e hospitais, mas não especifica por quem.
— A pessoa tem que ser treinada, e nem sempre a gente tem isso em todos os serviços. Entre a distribuição de uma cartilha, e os profissionais as lerem e se capacitarem para isso, há uma grande diferença. Hoje, nós temos muitos profissionais que não são da saúde fazendo o diagnóstico — diz Roberta.
Fonte: O Globo